quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O Vírus negligenciado

Estima-se que dois milhões de brasileiros estejam infectados pelo vírus HTLV. Parente do HIV, o vírus linfotrópico de células T humanas pode causar leucemia e uma doença neurológica que leva à dificuldade de locomoção, atinge olhos, pele e articulações. Salvador é a cidade com maior porcentagem de indivíduos infectados pelo HTLV-I no Brasil. Cerca de 50 mil pessoas - 2% da população da cidade - contraíram o vírus.
CPqGM/Fiocruz

Estima-se que dois milhões de brasileiros estejam infectados
pelo vírus HTLV, alvo de várias pesquisas da Fiocruz na Bahia

O Centro de Atendimento Integrado e Multidisciplinar ao Indivíduo Soropositivo (Centro HTLV), dirigido pelo patologista Bernardo Galvão, tem como objetivo produzir conhecimentos nacionais e programar ações de saúde dirigidas a portadores de HTLV. Segundo Galvão, apesar de ser mais antigo do que o HIV, o HTLV é pouco conhecido pelos seus portadores, que freqüentemente o confundem com o vírus da Aids.

"A diferença é que o HIV infectou diversos indivíduos formadores de opinião no país", disse Galvão. Na década de 80, intelectuais como Betinho e artistas como Cazuza, a comunidade científica e a sociedade organizada lideraram um movimento em prol dos portadores de HIV que culminou no bem-sucedido Programa Brasileiro de HIV/Aids.

No caso do HTLV, a maior parte dos portadores é de baixa renda e apenas 5% dos infectados desenvolvem doenças. Existem dois tipos do vírus, o HTLV-I e HTLV-II, sendo que somente o primeiro está diretamente relacionado com enfermidades. Segundo a infectologista Ceuci de Lima Xavier Nunes, as manifestações clínicas por ordem de gravidade são leucemia/linfoma de células T do adulto (ATL); paraparesia espástica tropical/mielopatia associada ao HTLV-I (TSP/HAM); e manifestações oftalmológicas, dermatológicas e articulares.

"A pessoa que desenvolve o ATL tem pelo menos 20 anos de infecção pelo vírus. A doença apresenta uma resposta paupérrima às quimioterapias até agora utilizadas, o que traduz o aspecto grave da doença", anuncia Ceuci durante a reunião semanal do Centro. Segundo ela, a sobrevida estimada para esses pacientes é bastante pequena: em média de 24 meses para sua forma crônica, dez meses para ATL tipo linfoma e seis meses para ATL aguda.

Até o momento, o Centro HTLV, que acompanha 150 pacientes infectados, registrou apenas um caso de ATL. "Foi um caso muito grave, o desenvolvimento da doença durou um ano, desde seu diagnóstico até o óbito", lembra a pesquisadora.

Outra doença relacionada ao HTLV, a HAM/TSP, é caracterizada pela perda progressiva dos movimentos dos membros inferiores, alterações urinárias, constipação crônica e disfunção sexual (disfunção erétil no homem e perda da libido na mulher). Também podem ocorrer algumas manifestações oftalmológicas, como a uveíte (inflamação do globo ocular), e uma forma grave de escabiose (sarna).

Outra característica do vírus é que ele atinge mais as mulheres e aumenta com a idade. As formas de contágio são as mesmas do HIV: relação sexual, amamentação e contato com o sangue contaminado (por transfusões ou compartilhamento de seringa).

De acordo com Ceuci, o grupo está iniciando um trabalho de descrição das principais características clínicas e laboratoriais de 100 pacientes atendidos no Centro. O objetivo é gerar conhecimentos e melhorar a assistência aos infectados. Eles vão comparar a carga viral dos sintomáticos e dos assintomáticos, detectar formas iniciais das doenças, avaliar os fatores de risco para aquisição das doenças, avaliar a procedência dos pacientes atendidos e, a longo prazo, formar um grupo de assintomáticos para serem acompanhados (saber quantos desenvolvem a doença etc).

O Centro HTLV foi criado por meio de uma parceria entre CPqGM, Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Fundação para o Desenvolvimento da Ciência, Ministério da Saúde e Secretaria de Saúde do Estado da Bahia. Ele funciona no Centro Médico de Brotas da Fundação para Desenvolvimento das Ciências, uma instituição sem fins lucrativos mantenedora da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.

Carona no navio negreiro

A elevada prevalência de HTLV-I em Salvador sempre chamou atenção dos pesquisadores. Um estudo realizado por Luiz Carlos Alcântara, pesquisador do Laboratório Avançado de Saúde Publica e professor da EBMSP/FDC, encontrou uma explicação que mistura genética e história. Analisando as diferentes formas genéticas do HTLV ao longo dos tempos, pesquisadores descobriram que a presença do HTLV-I em Salvador é resultado de múltiplas introduções pós-colombianas de linhagens virais vindas da África.

O HTLV tem uma alta estabilidade genômica, o que o torna um excelente marcador molecular para traçar as migrações das populações antigas. Uma análise com cepas provenientes de todo o mundo identificou quatro subtipos do vírus HTLV-I: Ia, também chamado de cosmopolita; Ib, ou centro-africano; Ic, conhecido como subtipo da Melanésia; e Id, isolado de pigmeus dos Camarões e indivíduos no Gabão.

O subtipo cosmopolita é dividido em cinco subgrupos, de acordo com suas distribuições geográficas: A ou transcontinental; B ou japonês; C ou oeste-africano; D ou norte-africano; e E, isolado de negros no Peru.

Em um estudo para averiguar a origem do HTLV-I em Salvador, Alcântara e sua equipe descobriram que o vírus encontrado na capital baiana está mais relacionado a uma linhagem proveniente do sul da África. O curioso é que a maioria dos escravos trazidos para Salvador - cidade com 80% da população constituída por descendentes africanos - veio do oeste da África, especialmente Benin, Nigéria e norte de Angola.

Para esclarecer a questão, Alcântara viajou até a África e descobriu que existem evidências de que africanos de Angola, Madagascar e Moçambique foram trazidos para a Bahia entre o final do século 17 e o início do século 19. Também durante a colonização da África do Sul pelos ingleses, nos séculos 17 e 18, muitos indivíduos fugiram para regiões vizinhas, hoje conhecidas como Angola, Madagascar e Moçambique. Entre 1817 e 1843, a Bahia recebeu em torno de 4.100 e 2.300 africanos bantos (oriundos do sul da África) vindos de Angola e Madagascar, respectivamente.

O pesquisador também lembra que os portos de onde os escravos saíam da África não estavam diretamente ligados às origens étnicas dos escravos, uma vez que eram freqüentemente capturados em outras regiões.

Desta forma, Alcântara acredita ter encontrado a explicação para a existência do subtipo cosmopolita, subgrupo transcontinental, proveniente da África do Sul, em Salvador. Ele também não descarta a hipótese desse subgrupo estar presente em Angola, ou mesmo em outros países africanos, e ter sido levado para a África do Sul por indivíduos infectados que migraram em busca de ouro e diamantes presentes na região.

Sarita Coelho 

FONTE: Dr. Visao

http://www.drvisao.com.br/reportagens/12-O-Virus-negligenciado

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